Haddock
Lobo, 1164, apartamento 53, ano de 2015, quinta-feira, 10h30 da noite. Luz
fraquinha do abajur iluminando a sala grande e "desmobiliada". Perto
da janela, a congregação das teorias de mesa de bar confabulando sobre a vida
de forma geral e sobre os relacionamentos.
M. diz que
gosta de seu emprego em SP, que ama a cidade e suas possibilidades. Mas diz que
também gostaria de viver em outro lugar, de outra forma, fazer outras coisas.
Não sabe o que quer, mas acha que sabe o que não quer. Acredita que o amor
existe, mas não tem nada a ver com essa coisa de novela ou de cinema. E fica
triste quando nota que a maior parte dos casais que a rodeiam são infelizes e
só estão juntos por comodidade.
A. está em
crise, pois mudou de profissão. Por que mudou? Também não sabe, só sabe que
sentia que não era aquilo que deveria fazer para o resto da vida. A. acredita
que ninguém nasceu para ser uma coisa só. Acha triste que tenhamos de nos
resumir dessa maneira ao escolhermos uma profissão. A. pensa que as relações amorosas
foram feitas para dar errado, mas que, como existe a teoria do caos, também
existe as relações duradouras e felizes. Fica triste quando nota nos bares e
restaurantes casais sentados sem conversar.
D. ouve
apenas. Profissionalmente e em relação a cidade sente-se bem. O que a pega um
pouco nos últimos tempos é o fim de sua relação com F. Ela rompeu. Estavam
morando juntos, mas ela não estava segura se era aquele o tipo de relação que
queria, se ele era o homem para ela. Tinha medo que passasse a vida a
conformar-se e não a apaixonar-se. Pensa na música de Chico: Lilly Brown.
"Nunca mais romance, nunca, nunca mais feliz". Casar seria matar a
paixão?
M., D., A.
Pessoas complexas. Enquanto falavam de suas crises, teorias, possibilidades
foram percebendo com felicidade e espanto o quanto eram parecidas em suas
frustrações e em suas expectativas. Em seus sonhos e em seus medos. Em seus
anseios e inseguranças.
As pessoas
complexas raramente sabem o que querem, mas frequentemente sabem o que não
querem. É um tipo de gente que não sabe comer a vida pelas bordas e já enfia a
colher, com tudo, no meio da sopa. Arriscam queimar a língua, porque sabem que
se queimar, passa. Ninguém morre de queimadura na língua, como ninguém morre de
coração partido, de dor de cotovelo ou frustração.
As pessoas
complexas não conseguem olhar para o mundo e aceitar simplesmente. Elas se
questionam o tempo todo tudo. Chatas? Talvez, mas é que não conseguem existir
de outro modo.
M., D. e A.
estão cansadas do mundinho previsível, das pessoas tão quadradas, das
possibilidades pequenas que o mundo lhes oferece. Está certo que a vida nos
atende escassamente, disso já sabemos. Mas para uma pessoa complexa é a morte
levar a vida a acomodar-se. Fazer as coisas porque vai ser mais confortável ou
socialmente aprovado. Não se trata de rebeldia, nem de originalidade. É apenas
que um coração complexo pulsa em arritmia, tem um compasso diferente, que se
mistura frequentemente ao passo descompassado do mundo e da vida.
As pessoas
complexas não acreditam que felicidade seja um carro do ano, um apê "um
por andar" ou uma cobertura. Não acham que roupas caras te fazem mais
bonita. Não acham bacana ir à balada da moda e nem fazer o que todo mundo faz.
Elas se
questionam sobre os relacionamentos, sobre os casamentos. Elas querem se casar,
querem se relacionar, mas tem que ser de verdade. Tem que ser com aquele alguém
que as veja por dentro, que esteja ali todo corpo, todo presente, pronto para
debruçar-se sobre o outro. Pronto para fazer da vida uma descoberta, uma
aventura, um lugar sem ontem e sem amanhã. Não precisam de status. Não sabem se
a fidelidade é a parte mais importante. Acreditam na lealdade, sobretudo.
Essa gente
complexa detesta assuntos burocráticos, relações burocráticas, protocolos,
regras sociais, dizer o que convém. São sinceras do fio do cabelo a ponta do
dedão do pé. Não dissimulam e detestam mesquinharia.
As pessoas
complexas acreditam na vida. Tem fé no amor e nas relações humanas. Elas olham
o mundo e enxergam suas limitações, mas também, os seus encantos.
Não têm
preconceito. São abertas ao novo. Gostam de experimentar sabores, cores,
amores, formas, conteúdos, jeitos, gentes, teorias. São orgânicas. São
recicláveis. São sustentáveis.
As pessoas
complexas acreditam que as pessoas são o que dizem, o que pensam, o que sentem.
Ninguém é o que tem. Aliás, pessoas complexas detestam assuntos como: a casa
que eu comprei na praia, o meu salário de R$ 15 mil, o meu carro novo, etc.
Gostam de
arte, de gente, de música, de viagens. Amam a liberdade e não sabem viver sem
ela.
Respeitam o
espaço do outro. Preservam a liberdade do outro. Amam as possibilidades do
outro.
Não querem
que as pessoas sejam como elas. São traumatizadas por uma sociedade que não as
compreende e por isso não exigem do outro nada além do que ele tenha para
oferecer.
Gostam de se
emocionar com a vida e com o mundo. Nunca se acostumam a ver pessoas morando na
rua, crianças pedindo dinheiro no semáforo. Choram com certas cenas da vida e
lutam para que o mundo seja um lugar mais justo, mais acolhedor, com mais
oportunidades para todos.
Fazem, todos
os dias, pequenas revoluções.
Adoram
conhecer lugares novos para formarem novas memórias. Conhecer gente nova, para
construírem novas histórias. Contudo, carregam o passado, com seus ensinamentos
e seus momentos inesquecíveis, sempre bem junto.
Se
reconhecem nos lugares e adoram andar em bando. Ficam juntos falando de
assuntos complexos ou de bobagens. Mas bobagens sinceras, coisas do bem. Se
falam mal de algo é só da rede globo, do big brother, de certos políticos,
enfim, de quem merece.
Pensam que a
vida é uma só, sem ensaio e sem after. Assim, vivem cada dia como se fosse o
único, como se fosse o último.
São pessoas
sensíveis, que buscam extrair da vida sua essência e que querem traçar seu
próprio destino. Acreditam na construção da felicidade e acreditam que essa não
está na conta bancária, nem em um marido ou mulher que os espera em casa, nem
em um filho, mas em cada um de nós.
Gente complexa tem alma de poeta
mesmo quando nunca escreveu sequer um verso.
Aina Cruz
Favoritar -Redatora, tradutora,
roteirista e blogueira
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