Na semana passada, sugeri a uma pessoa próxima que trocasse a palavra “idosas” por “velhas” em um texto. E fui informada de que era impossível, porque as pessoas sobre as quais ela escrevia se recusavam a ser chamadas de “velhas”: só aceitavam ser “idosas”. Pensei: “roubaram a velhice”. As palavras escolhidas – e mais ainda as que escapam – dizem muito, como Freud já nos alertou há mais de um século. Se testemunhamos uma epidemia de cirurgias plásticas na tentativa da juventude para sempre (até a morte), é óbvio esperar que a língua seja atingida pela mesma ânsia. Acho que “idoso” é uma palavra “fotoshopada” – ou talvez um lifting completo na palavra “velho”. E saio aqui em defesa do “velho” – a palavra e o ser/estar de um tempo que, se tivermos sorte, chegará para todos.
Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida, mas uma vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, “melhor idade”. Tenho anunciado a amigos e familiares que, se alguém me disser, em um futuro não tão distante, que estou na “melhor idade”, vou romper meu pacto pessoal de não violência. O mesmo vale para o primeiro que ousar falar comigo no diminutivo, como se eu tivesse voltado a ser criança. Insuportável.
A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também. Ser velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só inútil como uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital. Semanas atrás, em um programa de TV, o entrevistador me perguntou sobre a morte. E eu disse que queria viver a minha morte. Ele talvez não tenha entendido, porque afirmou: “Você não quer morrer”. E eu insisti na resposta: “Eu quero viver a minha morte”.
Na adolescência, eu acalentava a sincera esperança de que algum vampiro achasse o meu pescoço interessante o suficiente para me garantir a imortalidade. Mas acabei aceitando que vampiros não existem, embora circulem muitos chupadores de sangue por aí. Isso só para dizer que é claro que, se pudesse escolher, eu não morreria. Mas essa é uma obviedade que não nos leva a lugar algum. Que ninguém quer morrer, todo mundo sabe. Mas negar o inevitável serve apenas para engordar o nosso medo sem que aprendamos nada que valha a pena.
A morte tem sido roubada de nós. E tenho tomado providências para que a minha não seja apartada de mim. A vida é incontrolável e posso morrer de repente. Mas há uma chance razoável de que eu morra numa cama e, nesse caso, tudo o que eu espero da medicina é que amenize a minha dor. Cada um sabe do tamanho de sua tragédia, então esse é apenas o meu querer, sem a pretensão de que a minha escolha seja melhor que a dos outros. Mas eu gostaria de estar consciente, sem dor e sem tubos, porque o morrer será minha última experiência vivida. Acharia frustrante perder esse derradeiro conhecimento sobre a existência humana. Minha última chance de ser curiosa.
Há uma bela expressão que precisamos resgatar, cujo autor não consegui localizar: “A morte não é o contrário da vida. A morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. A vida, portanto, inclui a morte. Por que falo da morte aqui nesse texto? Porque a mesma lógica que nos roubou a morte sequestrou a velhice. A velhice nos lembra da proximidade do fim, portanto acharam por bem eliminá-la. Numa sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor. Os eufemismos são a expressão dessa desvalorização na linguagem.
Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não, eu não moro num asilo. Mas numa casa de repouso. Não, eu não estou na velhice. Faço parte da melhor idade. Tenho muito medo dos eufemismos, porque eles soam bem intencionados. São os bonitinhos mas ordinários da língua. O que fazem é arrancar o conteúdo das letras que expressam a nossa vida. Justo quando as pessoas têm mais experiências e mais o que dizer, a sociedade tenta confiná-las e esvaziá-las também no idioma.
Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados – idoso é uma palavra banguela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas “ido”, aquele que já foi. Velho é – e está. Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e até um Fernando Henrique Cardoso como idosos? Ou um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos.
Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a domesticação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como disse alguém, “nasce-se adolescente e morre-se adolescente”, mesmo que com 90 anos. Idosos são incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar. Velhos incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar. Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. Acredito que velhos desejam as recreacionistas. Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.
Basta evocar a literatura para perceber a diferença. Alguém leria um livro chamado “O idoso e o mar”? Não. Como idoso o pescador não lutaria com aquele peixe. Imagine então essa obra-prima de Guimarães Rosa, do conto “Fita Verde no Cabelo”, submetida ao termo “idoso”: “Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam...”.
Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição.
Como em 2012 passei a estar mais perto dos 50 do que dos 40, já começo a ouvir sobre mim mesma um outro tipo de bobagem. O tal do “espírito jovem”. Envelhecer não é fácil. Longe disso. Ainda estou me acostumando a ser chamada de senhora sem olhar para os lados para descobrir com quem estão falando. Mas se existe algo bom em envelhecer, como já disse em uma coluna anterior, é o “espírito velho”. Esse é grande.
Vem com toda a trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia antes, o que significa que sei muito menos do que achava que sabia aos 20 e aos 30. Sou consciente de que tudo – fama ou fracasso – é efêmero. Me apavoro bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole. Me estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas. Conheço cada vez mais os meus limites e tenho me batido para aceitá-los. Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas. Troco com mais frequência o drama pelo humor nos comezinhos do cotidiano. Mantenho as memórias que me importam e jogo os entulhos fora. Torço para que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. E espero que tenha tempo para envelhecer muito mais o meu espírito, porque ainda sofro à toa e tenho umas cracas grudadas à minha alma das quais preciso me livrar porque não me pertencem. Espero chegar aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje.
Envelhecer o espírito é engrandecê-lo. Alargá-lo com experiências. Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos. Só somos sábios na juventude. Como disse Oscar Wilde, “não sou jovem o suficiente para saber tudo”. Na velhice havemos de ser ignorantes, fascinados pelas dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e queremos buscar. É essa a conquista. Espírito jovem? Nem tentem.
Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem. Nem consentir que calem o que temos a dizer e a viver nessa fase da vida que, se não chegou, ainda chegará. Pode parecer uma besteira, mas eu cometo minha pequena subversão jamais escrevendo a palavra “idoso”, “terceira idade” e afins. Exceto, claro, se for para arrancar seus laços de fita e revelar sua indigência.
Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha. Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força. Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro, espero contar com um espírito cada vez mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com a graça de um espanto.
ELIANE BRUM
Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem.
sábado, 25 de fevereiro de 2012
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Adorei mummy's! me identifiquei com o texto tbm!
ResponderExcluirTexto polêmico e um tanto quanto tendencioso...
ResponderExcluirIsto porque, a meu ver, se me permitem, muita coisa que ela escreveu é da boca pra fora, para parecer diferente,ousada. Vi imagens dela no google que indicam que ela é MUITO BEM CUIDADA... Quem não faz questão de parecer velha não se cuida assim...
Além disso, é inegável que além do fator orgânico, físico, há um outro fator muito importante nessa questão da juventude/velhice: é a questão de ser um estado de espírito: já me senti uma velha aos 25 anos (no sentido de que a autora fala, ou seja, de próxima da morte) quando sofria de depressão e só pensava em suicídio, e agora, depois de ter superado não só aquela crise dos 25 anos mas todas as outras situações difíceis da minha vida, aos 62 anos me sinto jovem ainda, cheia de energias, tendo vida ativa, intensa, e desfrutando de liberdade e autonomia para realizar as atividades de que gosto...
Será que essa autora ignora que o termo "velho" tem uma conotação negativa, e é por isso que está sendo evitado? "Velho" remete a ultrapassado, inútil, desprovido de brilho, cor, vitalidade...
Veja o outro lado, o caso do Zerbini, que fez transplantes de coração até os 81 anos, meses antes de falecer, e que nessa idade ainda salvava vidas, participava de congressos, fundava hospitais do coração e estava em plena atividade. Será que ele poderia, nessa idade, ter sido tachado de "velho"?
Há pessoas que aos 40 não conseguem ter sequer 10% da energia, disposição e atividade de uma pessoa de 80 anos (como ele, por exemplo).
Por isso, pergunto: será que essa questão não seria relativa?
Grata pelo espaço.
Wânia